quarta-feira, 13 de junho de 2007

O cheiro, o sonho e o cimento

Os móveis pegaram poeira. O carpete continua manchado do vinho que seu pai derrubara por capricho na casa nova do genro. Os jornais começaram a empilhar e depois pararam de vir. A sua idéia de “a luz de velas” faz sentido agora que a energia foi cortada. Não lavei a roupa de cama, não pela preguiça de fazê-lo, mas porque ela ainda tem seu cheiro. Cheiro esse guardado com tanto carinho que não me permito ficar muito tempo enfiado em seu travesseiro. Meu cheiro é tão ruim.
Tua voz rindo estridente e tão irritante me fazia poupar a piada, que seria mais tarde contada apenas aos amigos. A casa não se silencia mais pois há uma porção de pedreiros trabalhando no prédio ao lado. Esses me poupam das poucas horas de sono e me lembram que o mundo ainda funciona. Uns ainda cantam ou assoviam músicas bregas de amor para as mulheres na rua. Parecem felizes ali, com seus assovios e sabendo que passarão a vida toda enterrados no cimento.
Parei de sonhar. Nunca fui religioso, mas pedi para aquele que você rezava, para que voltasse a sonhar. Ele não me atendeu, depois de um tempo parei de pedir. Em alguns momentos volto atrás, mas mesmo assim ele não me atende. Os amigos sumiram. Descobri-me um bom cozinheiro. Mas nunca ninguém experimentou, então não tem como saber se é realmente bom. Talvez eu convide aquela filha do síndico, ela é bem normal. Conheci-a porque seu pai a mandou aqui para perguntar-me sobre as contas de luz.
A risada dela é normal.Um pouco mais grossa que a tua. Os dentes são brancos. Dedos afilados, um pouco compridos demais para mim. Disse que voltaria depois para conversar. Ela é uma das moças que passa e os pedreiros fazem um coro. Olhei-a na rua pela janela cozinha, ela fez uma cara desgostosa aos homens, virou-se para frente e sorriu dissimulada. Você não faria cara alguma a eles. Apenas passaria. Eles assoviariam e gritariam qualquer coisa para que olhasse. E você mais uma vez, apenas passaria.
Os moradores me olham estranho agora. Isso quando os vejo por azar no corredor enquanto recebo o moço do mercado da esquina que me traz as frutas mais amassadas. Semana passada classificaria o leite que o mocinho me trouxe como semi-azedo.

A campainha tocou, era o síndico que parecia um tanto nervoso:
- Olha, a gente aqui do prédio não acha que você está muito bem, mal sai do apartamento, parece esquecer de tomar banho, ninguém nunca veio te visitar. Minha filha me disse que você comentou que sua esposa morava aqui...Mas você mudou pra cá mês passado...sozinho.

Ele fechou a porta. Dormiu ali mesmo no corredor por uns dois dias. Sonhou todo o tempo.Esqueceu-a. E nunca entendeu o porquê dos olhares assustados no corredor e os panfletos de auto-ajuda de baixo da porta...Ah, ele saiu uma vez ou duas com a filha do síndico, mas eles não se entendiam na cozinha.

Um comentário:

Anônimo disse...

ótimo texto!
Na verdade tenho que dizer: quem sabe outra hora fora da facul eu aprecie mais ainda, já que aqui o clima não é dos mais propícios!
bjao